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O Lima e o Carvalho Araújo, eram os carteiros de então: traziam jornais, pilhas de jornais de Lisboa - O SÉCULO e Diário de Notícias - e cartas, imensas cartas, sobretudo da América, escondendo dólares entre fotografias da casa, do carro, da família.
Minha mãe já sabia: dia de vapor era dia de gente em casa.
“A Sra Olga está? Era para ela me ler uma cartinha d'Ámérica.” “Faça o favor de subir e espere um pouco”.
Minha mãe deixava tudo para trás: o lixo no chão, a vassoura num canto, a comida ao lume, como se fosse ela a destinatária da carta. Educada num liceu americano, ela traduzia e respondia às cartas e ficava radiante por anunciar às pessoas o envio de “sacas d'América”.
“Olhe estou tão satisfeita!... Deus manda sempre uma coizinha a todos!”. Quantos segredos e dificuldades ela ouviu, para que, no seu inglês correctíssimo, transmitisse aos familiares emigrados e eles se compadecessem dos que haviam ficado atrás aguardando ansiosos uma carta de chamada!...
Quando saí de casa, aos dez anos, sofri imenso com as saudades e era a minha mãe que me animava. Contava-me como iam os meus irmãos, a família, relatava-me tim-tim-por-tim-tim os acontecimentos mais importantes da terra, sem dizer mal de quem quer que fosse. Quando havia um ciclone ou uma enchente de mar que inundava as Lajes, enviava-me fotografias, documentos preciosos que guardo, religiosamente. Quantas vezes ela interrompia a escrita por alguém ter batido à porta para ler ou escrever uma carta... e só a retomava mais tarde, já com outra caneta e papel, referindo o sucedido!...
As suas cartas ou crónicas, sem maledicência e mexericos, eram testemunhos de fé incentivantes, que me confortavam e alentavam.
Naquele tempo, (décadas de 60 e 70) os navios marcavam o ritmo das ilhas. Eles é que eram o acontecimento e a notícia. E se alguma tragédia ou infortúnio ocorressem, só quando a correspondência chegava ao destino é que se sabia.
Já rapazote, interessado pelo futebol nacional e pelo andar da minha equipa – o Sporting – pedi que de casa me enviassem o SÉCULO de segunda-feira, para ler a crónica desportiva.
O volume de papel, porém, só podia ser enviado num caixote, envolvendo laranjas, frascos de doce e queijo. Mas mesmo amarrotado, o jornal era lido de fio a pavio e as crónicas alimentavam discussões acesas entre sportinguistas, benfiquistas e portistas.
A distância e o insulamento geraram o atraso das ilhas e alimentaram a ânsia de partir e de experienciar melhores vidas em mundos novos que só conhecíamos por carta e fotografia.
Ainda hoje, apesar da diversidade e frequência de meios de transporte, não ficamos indiferentes à passagem de um qualquer navio no horizonte ou à presença de um navio de cruzeiros ou de carga fundeado num porto.
De há uns anos para cá o correio alterou-se por completo e as notícias já não chegam nem por carta, nem por telegrafia; sabemos e vemos o acontecimento em directo, onde quer que ocorra.
As recentes capacidades dos media geraram a globalização e deram uma dimensão sem limites à notícia da minha rua, emitida por quem quer que seja.
Daí a crise económica mundial ser do conhecimento de todos e ter-se transformado num pesadelo, numa síndrome de consequências irreparáveis.
O post-crise, será como o post-guerra: deixará feridas sociais e psicológicas profundas que levarão anos a sarar.
Por isso é que prefiro as cartas de antigamente, com notícias atrasadas!...
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